A culpa é da liderança estúpida, não da insuficiência da supervisão - João Vieira da Cunha

A culpa é da liderança estúpida, não da insuficiência da supervisão - João Vieira da Cunha
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Há duas ordens de causas para os problemas que se vivem hoje no mundo das empresas e na economia em geral. Umas são as que preocupam os economistas e os políticos, porque são como as abelhas, gostam de picar e, quando picam, fazem muito mal. As outras são as que aborrecem, mas não assustam os políticos e os economistas, porque são como as moscas, não fazem mal nenhum, chateiam mas não aleijam.

As causas que preocupam os economistas e os políticos têm nomes difíceis: estruturas de governação, riscos morais, regulação baseada em princípios e securitização.

Estas causas têm nomes difíceis, porque são estudadas pelas áreas mais sérias do conhecimento, como a economia, as finanças e o direito. De forma simples, o que preocupa os economistas e os políticos é a tensão entre as duas coisas que determinam o comportamento das pessoas que trabalham (e das empresas que operam) nos mercados financeiros: a vontade de ganhar dinheiro e o medo de ser apanhado a fazer malandrices para ganhar dinheiro.

A vontade de ganhar dinheiro é um problema, porque é uma tentação para as pessoas que trabalham nas empresas da área financeira, como os bancos de investimento, as corretoras e as seguradoras. É que há muitas oportunidades para ganhar muito dinheiro fazendo algumas malandrices, como mostram vários casos recentes na banca portuguesa e nos mercados financeiros internacionais. 

Dizem os economistas e os políticos que as pessoas e as empresas que trabalham na área das finanças só não passam o dia todo, todos os dias, a imaginar novas malandrices para enriquecer, porque têm medo de ser apanhadas por uma série de instituições que os vigiam, como os bancos centrais e as comissões dos mercados mobiliários. O que tira o sono aos políticos e aos economistas (e que devia tirar o sono a todos os contribuintes) é que estas instituições não são lá grande coisa como polícias dos mercados financeiros. Pior, as leis que estas instituições tentam impor são imperfeitas e não conseguem acompanhar as inovações do mercado.

É mais ou menos como aquela vez em que eu deixei um frasco cheio das bolachas preferidas do meu filho aberto na mesa da sala de jantar, com ele a ver televisão, enquanto fui escrever meia hora para o meu escritório lá de casa. O meu filho tinha tantas dificuldades para resistir ao cheirinho das bolachas, como um corretor num banco de investimento tem dificuldade em resistir ao bónus de que precisa para comprar um carro desportivo novo cada ano. Eu tinha tanta dificuldade para vigiar o meu filho, com dois andares a separar o meu escritório da sala de estar, como os bancos centrais parecem ter para vigiar os bancos de investimento, com relatórios e estudos a separar o que os bancos de investimento fazem do que os bancos centrais sabem. Por isso, tal como os bancos de investimento, e outras instituições, ganharam muito dinheiro porque os bancos centrais não os conseguiam vigiar, o meu filho também comeu muitas bolachas porque eu não via o que ele estava a fazer.

Os bancos centrais olham para este problema (o das malandrices dos bancos de investimento, não o das traquinices do meu filho) como um problema de legislação e supervisão. Mas estão enganados.

Reportagem após reportagem e estudo após estudo mostram que o problema é, fundamentalmente, um problema de liderança. Eu sei que a liderança não é um tema sério. A liderança não tem matemática. Não há nada escrito em latim sobre a liderança.

A liderança pode não ser um tema sério. Mas é um tema que tem que se levar a sério, porque é com a liderança que começam os problemas que têm sido erradamente apresentados como o resultado de distorções no mercado e fracassos de legislação. A história recente dos grandes desastres financeiros tem vários exemplos.

A crise económica que ainda hoje vivemos, começou com um problema de liderança. Os líderes dos bancos comerciais americanos premiavam os seus empregados por vender empréstimos à habitação muito acima das possibilidades das pessoas que os contraíam.

Vários anos antes, tivemos a ENRON. Na ENRON, os líderes impunham uma cultura onde se pisava a garganta dos colegas, se isso garantisse uma promoção mais rápida ou um bónus maior. As pessoas que trabalham no sector financeiro são empregados de uma empresa e, como qualquer outro empregado, são susceptíveis ao comportamento dos seus líderes.

As malandrices financeiras não são causadas por uma montanha de notas de dólar que está à vista destas pessoas, como o frasco das bolachas estava à vista do meu filho. As malandrices financeiras são causadas por líderes que apontam para a montanha de dinheiro e convencem os seus colaboradores de que nada é mais importante do que tirar de lá o máximo de notas possível, antes que alguém o faça primeiro.

Esta semana, descobrimos que até o problema da supervisão é um problema de liderança. Uma funcionária do banco central americano passou para a imprensa um conjunto de gravações que mostra porque é que o banco central americano tem sido tão ineficaz a detectar as malandrices feitas pelas empresas de investimento (nestas gravações específicas era a Goldman Sachs). É que a liderança do banco central americano impõe uma cultura de medo aos seus colaboradores. Essa cultura faz com que os colaboradores aceitem tudo o que os bancos de investimento lhes contam nos relatórios, sem se atreverem a questioná-los.

Têm medo.

Têm medo de que os chefes os acusem de estarem a ser hostis às empresas do sector financeiro e sejam castigados por isso. Nem lhes passa pela cabeça fazer nenhuma análise da sua própria iniciativa, para perceber o que acontece no sector financeiro que os relatórios não revelam. Têm tanto medo disso como eu tenho de saltar de paraquedas. Eu sei que é perfeitamente seguro saltar de paraquedas, mas que mete muito medo, mete.

Liderança. É aí que tudo começa.

Reduzir a quantidade de dinheiro que se pode ganhar a fazer malandrice nos mercados financeiros e aumentar a probabilidade de ser apanhado quando se faz malandrice nos mercados financeiros, é como dar um medicamento para diminuir a dor a alguém que partiu uma perna: apenas reduz a dor, mas a pessoa não consegue andar, a não ser que também se engesse a perna.

Precisamos de melhores líderes para engessar esta perna partida que não deixa Portugal correr para a frente do pelotão Europeu. Depois, se quisermos reduzir a tentação e aumentar a supervisão, para ter a certeza de que corremos sem coxear por causa das dores, não faz mal. Mas eu penso que já temos provas suficientes de que, por mais sofisticada que seja a matemática da economia, e por mais erudita que seja a linguagem das leis, a economia e a política só tratam dos sintomas. Para tratar dos problemas, precisamos de vencer o medo e a vergonha de levar a liderança mais a sério do que a economia e a política. Senão, estaremos apenas a estimular intelectualmente as pessoas menos escrupulosas da indústria financeira, dando-lhes todos os anos um desafio novo para ganhar cada vez mais dinheiro com leis cada vez mais apertadas, mas provavelmente menos eficazes.

É a liderança estúpida, não a legislação ineficaz, que nos trouxe até onde estamos.

 


Joao-Vieira-da-CunhaJoão Vieira da Cunha é Diretor do Instituto de Investigação e Escola Doutoral da Universidade Europeia de Lisboa e professor visitante na Universidade de Ashrus, na Dinamarca. É doutorado em Gestão pela Sloan School of Management do MIT e Mestre em Comportamento Organizacional pelo ISPA. A sua investigação procura descobrir como é que as empresas podem tirar partido da desobediência dos gestores e dos colaboradores. Tem sido publicado nas principais revistas científicas internacionais na área da gestão e colabora regularmente na imprensa. A sua investigação tem ganho vários prémios internacionais de organizações, como a Academy of Management e a System Dynamics Society. Os seus clientes de consultadoria e formação de executivos incluem o Banco de Portugal, o Ministério da Saúde, a Novabase e o Barclays Bank.