No mundo do trabalho, há coisas que ouvimos dizer logo nos primeiros tempos e que, não sendo questionadas, se tornam verdades absolutas. Uma dessas coisas é que um profissional não precisa de gostar das pessoas com quem trabalha.
“Eu trabalho com qualquer pessoa, desde que faça o seu trabalho, eu faço o meu.” - esta é uma frase defendida por muitos, senão a maioria, e tida como à prova de bala. Tem inerente que um bom profissional, competente, orientado para os objectivos do seu trabalho, não se deixa afectar por estados de espírito ou maneiras de estar não apenas diferentes da sua, mas por vezes incompatíveis com a sua. Esta ideia é ainda mais reforçada quando, em conversas de amigos, concluímos tantas vezes que preferimos trabalhar com alguém funcionalmente competente mesmo que humanamente menos “agradável”, ao invés do tipo “porreiro” mas incompetente (com a devida nota que estas noções, de competente e de porreiro, dependem de uma escala de valores que varia para cada um de nós e também para cada empresa).
E, foi com este estado de espírito, que fui surpreendida numa conversa com um amigo que tem uma empresa e que lidera uma equipa. Falávamos de más contratações e de como “a” pessoa errada pode contaminar toda uma equipa. E enquanto concordávamos que construir a equipa certa é um passo decisivo para qualquer projecto (não há boa ideia que resista à equipa errada), eu comentei que “não precisamos de ser todos amigos para trabalharmos uns com os outros” (o que é verdade). Recebi de volta a seguinte resposta: “podemos não ser amigos, mas precisamos de conseguir viver uns com os outros” (o que é bem mais verdade). Viver uns com os outros numa empresa de dimensão maior é mais fácil do que numa PME. É também por isso que, se o recrutamento da equipa certa é fundamental em qualquer cenário, numa empresa pequena se torna crítico. Se descontarmos as franjas - os tipos brilhantes mas absolutamente execráveis como seres humanos e os tipos-muito-boas-pessoas mas absolutamente incapazes profissionalmente - veremos que a maioria das pessoas é mais ou menos competente, dependendo da tarefa, da motivação, da equipa, e curiosamente, veremos também que a maioria das pessoas é mais ou menos um bom ser humano, dependendo dos dias, dos momentos de vida e do ambiente em que se insere. É por isso que numa grande empresa é mais suportável aturar as pessoas das franjas (os brilhantes-execráveis e os incompetentes-boas-pessoas): sobra sempre um grupo alargado de “pessoas normais” e nessas conseguimos estabelecer sempre as nossas relações preferenciais.
Numa pequena empresa, a realidade é outra. Como há menos pessoas, o incompetente faz diferença no resultado final. Como há menos gente, o execrável afecta a moral dos outros de forma mais intensiva e muitas vezes letal. Como há menos pessoas, temos menos possibilidades de encontrarmos aquelas que melhor se “encaixam” com a nossa forma de estar e de pensar. E, nos piores cenários, quando um execrável ou incompetente ganha ascendente na equipa, o que também é mais fácil de acontecer, dependendo muito das circunstâncias, tudo pode ficar comprometido. Porque realmente são as pessoas que fazem as empresas - as boas pessoas fazem as boas empresas. Quanto mais pequena é a equipa, mais importante é aquilo que o meu amigo me dizia: temos de viver bem uns com os outros.
Voltei a lembrar-me do relato sobre o Google que ouvi do professor Sverker Alänge, cuja equipa de research foi a primeira a conseguir passar do restaurante na sede da empresa, em Mountain View. Os fundadores do Google, Larry Page e Sergey Brin, são, ainda hoje, obcecados pelas pessoas que contratam. Contratam milhares por ano e procuram estar a par dos processos e saber quem são. A razão está expressa naquele que é o objectivo dos fundadores desde a primeira hora: organizar toda a informação existente online e criar uma empresa fantástica para se trabalhar.
Aqui entra o problema da forma como contratamos e dos processos convencionais de selecção. Depois de lermos dezenas de CVs, agarramo-nos entusiasticamente aquele que conseguiu ser um bocadinho diferente, que disse algo sobre si que nos fez ficar interessados, que não nos esmagou com informação igual à das outras dezenas. Com sorte temos dois, vá, três desses. Marcamos uma entrevista. A entrevista é mais ou menos convencional - há quem tenha uma “narrativa” pensada, há quem introduza questões mais pessoais. Uma pessoa que foi meu chefe perguntava, por exemplo, “se precisasse pedir dinheiro emprestado, a quem pedia, à mãe, ao chefe ou ao namorado/a”. Outros perguntam sobre livros, músicas, filmes. No Google, perguntam coisas doidas e esotéricas (que hoje também já estão em desuso). O ponto é: não será certamente em meia hora, uma hora, duas horas de entrevista que vamos conhecer-nos. Nem quem recruta, que supostamente está numa posição mais favorável, nem quem está a ser recrutado. Um quer tentar ver o que muitas vezes não se pode ver numa entrevista, o outro quer agradar e ao mesmo tempo perceber se se vai dar bem. É uma tensão terrível para os dois lados.
É uma boa razão para desdramatizarmos o período experimental que a lei prevê e fazer uso desse recurso da melhor forma. Existem vantagens para ambas as partes. Para quem recruta, permite perceber se aquela pessoa tem, de facto, as competências anunciadas no CV e na entrevista, mas, mais importante do que isso, dá tempo para avaliar pelo dia-a-dia se contratou uma pessoa que tem a atitude, o tipo de valores e de objectivos que se alinham com a empresa e com a equipa que gere. Para quem é recrutado, não é muito diferente. Antes de se tornar um sofredor, porque não suporta o chefe ou não se entende com os colegas ou afinal aquela função não corresponde ao prometido na entrevista, dispõe de uns meses para decidir se fica ou se vai.
Alguns dirão que isto não é válido para todas as funções e que, com desemprego nos 15%, o bem-estar profissional e a afinidade com a empresa em que se está inserido são valores menores perante um bem de primeira necessidade chamado salário. Discordo. Se queremos crescer como país, temos de crescer como empresas e isso só é possível reunindo as pessoas que melhor servem cada projecto. Na maior parte dos casos, trata-se disso mesmo, de encontrar as conjugações certas. O imobilismo, as situações consumadas para as quais não existe alternativa prejudicam-nos a todos. Prejudica quem paga um salário e não tem a equipa que pretende e prejudica quem recebe um salário e não está num ambiente ou com a realização que deseja. E, se exceptuarmos os brilhantes-execráveis e os incompetentes-boas-pessoas, perceberemos que na maior parte dos casos é mesmo e tão-somente necessário ir por tentativa e erro. Por vezes acerta-se mais cedo, por vezes mais tarde. Mas se até o casamento é precedido de um namoro - e ainda assim, às vezes acaba em divórcio - não há nenhuma razão para que as empresas e as pessoas não se dêem o tempo necessário para perceber se é uma relação com futuro.
Rute Sousa Vasco é jornalista, diretora editorial do Portal SAPO e partner da Videonomics. Como autora, tem desenvolvido vários trabalhos nas áreas de gestão, comunicação e responsabilidade social, tendo publicado até ao momento o livro “A Sorte dá Muito Trabalho: O percurso de 23 CEO portugueses”. Na vertente multimédia, tem-se dedicado à produção de conteúdos em temas de empreendedorismo, liderança e criatividade. Frequentou o curso de Relações Internacionais no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e tem uma Pós-Graduação em Marketing pela Universidade Católica Portuguesa e uma Pós-Graduação em Televisão e Cinema pela mesma universidade.