Humildade, o condimento secreto da liderança? Liderar com os pés bem assentes na terra

Humildade, o condimento secreto da liderança? Liderar com os pés bem assentes na terra
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“Humildade” é palavra que raramente entra no vocabulário dos especialistas da liderança. Eis três razões principais. Primeira: a humildade é frequentemente confundida com fraca autoestima, passividade e sentido de inferioridade. 

Presume-se que ser humilde é ser desprovido de autoconfiança e incapaz de enfrentar adversidades. Segunda razão: o paradigma prevalecente de liderança eficaz é o do líder heroico, dotado de capacidades sobre-humanas, capaz de mudar sozinho o curso dos acontecimentos. Terceira razão: como virtude, a humildade é frequentemente associada a noções de religiosidade.

Importa desmistificar: a humildade (do latim humus: “terra” ou “terreno”) significa “ter os pés assentes na terra”. Os líderes humildes compreendem as suas forças e fraquezas, e são capazes de reconhecer as forças e as qualidades dos outros. Não fazem alarde dos seus sucessos. Reconhecem os seus erros e aprendem com os mesmos. Escutam os outros e valorizam os respetivos contributos. E atribuem reconhecimento aos sucessos e às qualidades dos outros. Em suma: não se consideram o centro do universo.

  • O condimento secreto
O leitor mais cético não terá dificuldade em encontrar exemplos de líderes eficazes que denotam arrogância e narcisismo. Importa, todavia, considerar três pontos.

Primeiro: a arrogância e o narcisismo, ainda que possam gerar resultados de curto prazo, podem fazer perigar o sucesso de longo prazo. Se dúvidas restarem, preste-se atenção ao sucedido a Dominique Strauss-Kahn e a líderes empresariais que, associados a escândalos, acabaram por descarrilar, destruir as suas empresas, prejudicar as vidas dos empregados e perigar os interesses legítimos de clientes e de outros stakeholders.

Segundo ponto: líderes arrogantes e narcisistas podem criar anticorpos que destroem a cooperação e o capital social.

Terceiro ponto: a relação entre arrogância e sucesso é, frequentemente, enganosa. O engano resulta do facto de as pessoas arrogantes e narcisistas, ao contrário das humildes, devotarem energias à autopromoção. Por conseguinte, conhecemos mais arrogantes bem-sucedidos do que humildes igualmente bem-sucedidos. Mas isso não significa que os arrogantes sejam mais eficazes do que os humildes. A revista The Economist (janeiro de 2013) escreveu, a propósito da reunião do Fórum Económico Mundial: “Se a liderança tem um condimento secreto, ele pode bem ser a humildade. Um chefe humilde compreende que há coisas que ele não sabe. Ele ouve: não só os outros mandachuvas em Davos, mas as pessoas que não são convidadas, como os seus clientes”.

  • Os exemplos abundam

Uma boa maneira de compreender a relevância da humildade na liderança consiste em prestar atenção a líderes que revelaram tal virtude. Sobre Eusébio, um líder à sua maneira, escreveu Camilo Lourenço (Jornal de Negócios, 6 de janeiro de 2014): “A humildade como lição de vida”.

Papa-FranciscoO Papa Francisco, que não é propriamente um “beato” nem ingénuo, tem relevado humildade – para assumir os seus erros e “pecados”, para escutar os liderados, e para reconhecer os limites da sua capacidade de intervenção. Naturalmente, a essa virtude estão associadas enorme força de vontade, ambição de mudança, e grande capacidade para enfrentar adversidades. Em Bergoglio se combinam humildade e ambição – ou seja, “humbição”.

O leitor poderá argumentar que Francisco não é exemplo significativo para os mundos empresarial ou político. Mas os exemplos que contrariam o argumento abundam. Anne Mulcahy, quando nomeada líder da (então moribunda) Xerox, revelava escassos conhecimentos e competências na área financeira. Para quem tomava em mãos uma empresa na fronteira da bancarrota, essa fragilidade poderia ser um mau prenúncio. Todavia, Mulcahy fez da fraqueza força. Assumiu ignorância financeira e pediu ajuda aos peritos. Evitou o palco mediático e arredou-se das parangonas da publicidade. Além de revelar coragem, deu mostras de humildade. Salvou a Xerox e foi amplamente reconhecida como excelente líder.

Rosália Amorim escreveu na revista Exame (julho de 2013) que os líderes “pavões perdem terreno para os humildes”. Darwin Smith, ex-líder da Kimberly Clark, era a antítese do pavão. Foi descrito do seguinte modo por Jim Collins:

“Comparado com [outros CEOs], Darwin Smith parece ter vindo de Marte. Tímido, despretensioso e mesmo maljeitoso, Smith evitava as atenções (…). Todavia, considerá-lo como mole ou brando é um erro terrível. A sua falta de vaidade combinava-se com uma feroz, ou mesmo estoica, determinação perante a vida”.

nelson mandelaMandela foi outro exemplo paradigmático de como a humildade, quando combinada com outras virtudes, é um poderoso nutriente da liderança eficaz. Soube reconhecer humildemente derrotas e não hesitou em elogiar os méritos dos seus adversários políticos. A revista The Economist (5 de Dezembro de 2013) descreveu-o do seguinte modo: “Não procurava recompensas; mesmo quando se transformou numa figura de renome mundial, era modesto e raramente tomou a sua autoridade como garantida. (…) Na prisão, recusava privilégios para si próprio se os mesmos eram recusados aos outros prisioneiros”.

Ninguém duvidará de que Mandela era profundamente determinado e ciente das suas forças. Cometeu erros. Chegou a revelar vaidades. Mas esses pecadilhos não o impediram de ter os pés assentes na terra, de reconhecer os erros e aprender com os mesmos, de valorizar os adversários, e de perdoar. Sem humildade, o seu legado teria sido mais pobre.

abraham-lincolnLincoln, o 16º presidente dos EUA, é outro epítome de humildade. Assumiu erros e procurou, sistematicamente, aprender com os mesmos. Convidou para a equipa de governação os maiores rivais políticos, por serem de valia imprescindível para o país. A humildade conferia-lhe um peculiar sentido de humos. Conta-se que um congressista obteve uma autorização de Lincoln para que o Departamento de Guerra, liderado por Stanton, prestasse apoio num projeto. Quando o congressista se dirigiu a Stanton, este recusou cumprir a autorização e afirmou que Lincoln era um idiota por ter tomado tal decisão. O congressista regressou, dando conta a Lincoln da ocorrência. Lincoln perguntou-lhe: “Stanton disse mesmo que eu era um idiota?” O congressista respondeu: “Sim, e repetiu”. Lincoln terá retorquido: “Se Stanton disse que eu era um idiota, então devo sê-lo, pois está quase sempre certo e normalmente diz o que pensa. Vou passar por cima disso e encontrar-me com ele”.

  • Benefícios da humildade

O exposto ajuda a compreender o argumento de Bob Sutton: “Os melhores chefes são fortemente autoconfiantes, mas uma dose saudável de dúvidas e humildade salva-os de serem arrogantes e casmurros. Os chefes que não conseguem estabelecer este equilíbrio são incompetentes, é perigoso segui-los, e são totalmente degradantes.” Ou seja, os líderes mais eficazes são nutridos de humbição. Evitam a luz da ribalta que poderia toldar-lhes a sensatez necessária à tomada de decisões. Procuram conselhos que lhes permitam tomar decisões de melhor qualidade. São mais propensos a reconhecer e a aprender com os erros e fracassos. Aceitam o fracasso com pragmatismo. Prescindem de posições de poder para as quais sentem que não são competentes. Partilham honrarias e reconhecimento, assim promovendo a confiança e o empenhamento dos seus colaboradores. São frugais no uso de recursos e evitam a ostentação.

Os líderes humildes também são mais imunes às teias da adulação e da bajulação. São mais recetivos às críticas e estão mais dispostos a mudar quando necessário. Evitam a complacência. Não estando centrados no autoengrandecimento, trabalham em prol da equipa e da organização. Atuam pelo exemplo e inspiram os colaboradores. São menos propensos a enveredar por projetos faraónicos. São também mais capazes de partilhar fracassos, dificuldades e frustrações com outras pessoas. Desse modo, obtêm apoio social e emocional, libertam-se mais facilmente de emoções tóxicas e são mais capazes de enfrentar o futuro com resiliência.

  • Comentários finais

Num tempo em que as organizações necessitam de aprender e ajustar-se constantemente às alterações da envolvente, a humildade dos líderes (e de toda a organização) é crucial. Permite que a aprendizagem contínua seja a regra. Ajuda a aprender com os erros. Permite olhar para a realidade com uma perspetiva realista e não sobranceira ou pretensiosa. Ajuda a organização a prestar melhor serviço aos clientes. Evita o deslumbramento com os sucessos e ajuda os líderes e os membros organizacionais a compreenderem que o sucesso passado não é garantia de sucesso futuro.

Naturalmente, a humildade é uma virtude difícil. Adotar uma postura humilde pode ser problemático em “ninhos de víboras”. Tornando-se menos visível e atribuindo justamente os créditos a outras pessoas, um líder humilde pode perder oportunidades de promoção, sobretudo se os seus concorrentes forem exímios no jogo das influências. A humildade pode também suscitar uma imagem de fraqueza se não for complementada com coragem, perseverança e integridade. O excesso de humildade pode levar o líder a perder credibilidade se regularmente assumir a sua ignorância. Em suma: a virtude está no meio.

Finalmente, um paradoxo: a humildade pode tornar-se arrogante. Golda Maier, ex-primeira ministra israelita, terá afirmado: “Não seja tão humilde; você não é assim tão importante”. Desconfie, pois, da humildade de quem apregoa a sua própria humildade, explícita ou implicitamente. Atente ao provérbio iídiche: “O muito humilde é metade orgulhoso”.


Armenio RegoArménio Rego é doutorado e agregado em Gestão, lecionando na Universidade de Aveiro. É autor e coautor de mais de três dezenas de livros e tem desenvolvido projetos de consultadoria em liderança e gestão de pessoas e realizado dezenas de conferências, seminários, wokshops e eventos de formação de executivos. Foi agraciado com diversos prémios, em Portugal e no estrangeiro.