A FIFA e o falhanço da corporate governance – Camilo Lourenço

A FIFA e o falhanço da corporate governance – Camilo Lourenço

A crise que afeta a FIFA, o organismo que gere o futebol mundial, é um bom motivo para revisitar a questão da governance das organizações.

Facto 1 – A sucessão de investigações, feitas nos últimos dez anos, davam como altamente provável a existência de corrupção na organização. O último relatório, da autoria do juiz americano Michael Garcia, era peremptório no seu veredito. 

Facto 2 – Joseph Blatter, e a sua equipa diretiva, nunca levaram muito a sério as investigações. A prova é que o relatório Michael Garcia nunca conheceu a luz do dia.

Facto 3 – As federações reelegeram sucessivamente Blatter, e a sua equipa, durante vinte anos.

Pergunta: Como foi possível uma organização com o peso da FIFA falhar grosseiramente em regras básicas de governação? Não, não me refiro apenas à reeleição de Blatter quando já havia certezas de corrupção a vários níveis da organização (ao ponto de suscitar dúvidas sobre o envolvimento do presidente). O problema começa antes: como falharam as regras de prevenção de subornos e luvas?

O problema é tanto mais grave quanto nem sequer os “mecanismos exteriores de alerta” foram ativados. De que mecanismos se trata? Das empresas patrocinadoras das provas organizadas pela FIFA (Mundiais). Elas representam hoje em dia uma fatia importantíssima do orçamento da organização. Para se ter uma ideia do contributo das empresas, entre o Mundial da África do Sul e o do Brasil, a FIFA foi buscar cerca de 5,7 mil milhões de euros. Ora boa parte deste valor corresponde a patrocínios referentes aos Mundiais. Por outras palavras, a FIFA parece ser um case-study onde todos os mecanismos destinados a prever uma crise falharam. 

Porquê? Porque o mecanismo de “checks and balances” não funcionou. Interna e externamente. Internamente, porque tudo indica que os mais próximos de Blatter se deixaram envolver na teia de negócios escuros. Internamente ainda, as próprias federações com peso para destronarem o presidente, casos da Ásia e América do Sul, terão sido “compradas” pela direção da organização: Blatter implementou grandes programas de apoio ao futebol naquelas geografias, circunstância que terá impedido as federações de denunciarem situações menos claras (o chamado “blow the whistle).

O que é mais estranho neste processo, foi a ausência de sindicância por parte das empresas. Trata-se de organizações à escala planetária (v.g. Adidas, Visa, McDonald’s, Coca-Cola, Hyundai) que têm tudo a perder se estiverem ligadas a casos onde se suspeita de corrupção. Além disso, boa parte delas estão cotadas em Bolsa. Ou seja, sujeitas a criterioso escrutínio por parte da supervisão do mercado e dos próprios acionistas. 

Talvez a resposta para o falhanço da sindicância das empresas esteja na natureza dos eventos que patrocinam: o último mundial foi visto por mais de mil milhões de pessoas. E é provável que este número seja pulverizado na próxima prova. Ora, ninguém quer ficar de fora desta “montra”. Deve ter sido isso que levou as empresas a revelarem-se pouco cuidadosas na gestão deste dossiê. Deviam ter passado das palavras aos atos, quando, em Dezembro de 2014 (quando Michael Garcia se demitiu na ausência de consequências do seu relatório), avisaram a FIFA de que poderiam retirar os patrocínios…

Depois do escândalo, acentuado pela saída de Blatter, a FIFA tem um pesado e difícil trabalho de reconstrução pela frente. Aquilo que fizer, em termos de redefinição dos mecanismos de fiscalização interna e externa, vai ser monitorado de perto pelas empresas.

 


Camilo-Lourenço-FotoNovaCamilo Lourenço é licenciado em Direito Económico pela Universidade de Lisboa. Passou ainda pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque e University of Michigan, onde fez uma especialização em jornalismo financeiro. Passou também pela Universidade Católica Portuguesa. Comentador de assuntos económicos e financeiros em vários canais de televisão generalista, é também docente universitário. Em 2010, por solicitação de várias entidades (portuguesas e multinacionais), começou a fazer palestras de formação, dirigidas aos quadros médios e superiores, em áreas como Liderança, Marketing e Gestão. Em 2007 estreou-se na escrita, sendo o seu livro mais recente “Saiam da Frente!”, sobre os protagonistas das três bancarrotas sofridas por Portugal que continuam no poder.