Até há pouco tempo empresas digitais e fabricantes automóveis diziam ter vantagens umas sobre as outras. Hoje as coisas começam a ganhar outros contornos.
Camilo Lourenço
Há um ano cada um puxava para seu lado. Os carros não tripulados da Google prometiam um futuro sem condutor. A Apple dizia que estava a desenvolver o seu próprio veículo não tripulado. Outras marcas, como a Mercedes, a Volkswagen (através do seu braço para o mercado de luxo, a Audi) e a BMW não queriam ficar atrás e diziam estar também a testar veículos autónomos.
Cada lado da equação (empresas digitais) e fabricantes de hardware (automóveis) dizia ter vantagem sobre o outro. As digitais porque o software está cada vez mais presente nos computadores (centralinas ou outro nome qualquer) que regulam as funções básicas de um automóvel. Os fabricantes de hardware porque afiançavam que nenhum “newcomer”, por muito bom que fosse, conseguiria dominar os segredos do fabrico de plataformas complexas. O melhor exemplo disso, diziam, eram as dificuldades da Tesla, que há anos tenta colocar veículos elétricos no mesmo patamar de qualidade e autonomia que os veículos a combustão.
Passado um ano as coisas começam a ganhar outros contornos. As empresas disruptoras (tecnologia digital) e os incumbentes parecem estar a convergir; o que foi particularmente evidente no último CES - Consumer Electronic Show (que decorreu de 6 a 9 de janeiro em Las Vegas, EUA) e no Salão de Detroit (também nos EUA, de 16 a 24 de janeiro), onde se percebeu o início de uma nova tendência.
Como explicar este súbito casamento de conveniência? Recuemos um pouco no tempo. É verdade que há pelo menos dois anos as marcas tradicionais (como Mercedes, Audi e BMW) fazem testes avançados com veículos autónomos. Joaquim Oliveira, um dos dois portugueses que fazem parte do júri internacional do “Car of the Year” (prestigiado troféu do setor automóvel) contava-me há dias que há pouco mais de dois anos testou alguns destes veículos. Em autoestrada e em pista. E confessava que o modelo da Mercedes já era capaz de mudar de faixa sozinho, ultrapassar o veículo da frente e recuperar a faixa anterior. Tudo sem qualquer intervenção de quem viajava sentado no lugar do condutor. É verdade também que os não incumbentes registavam um grande avanço. Primeiro tiveram o mérito de entrar numa indústria que cheirava a mofo. A Google, por exemplo, tem em circulação (em testes) veículos não tripulados há pelo menos três anos.
O problema é que uns e outros não dominam, sozinhos, todas as variáveis de um modelo de negócio em transformação. Como garantir, por exemplo, que os fabricantes de automóveis, habituados a juntar chapa e peças mecânicas, têm a expertise suficiente para produzir software confiável. Não apenas “foolproof” mas seguros: já imaginou o risco para a segurança automóvel se o software de um veículo for objeto de hacking?
Estou convencido de que empresas digitais e fabricantes de automóveis estão a passar por aquilo que já vimos no passado: a expertise de uns complementa a de outros (embora em áreas diferentes), o que os faz juntarem forças. Mas a explicação não fica por aqui. Provavelmente ambas as indústrias descobriram que demorariam demasiado tempo, e gastariam muito dinheiro, se cada uma quisesse ganhar a expertise da outra.
Moral da história: o consumidor vai ganhar com estes desenvolvimentos. Dentro de cinco anos teremos automóveis muito mais seguros e a preços mais acessíveis do que seria possível se disruptores e incumbentes não dessem as mãos. Espere mais do mesmo noutros setores.
02-02-2016
Camilo Lourenço é licenciado em Direito Económico pela Universidade de Lisboa. Passou ainda pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e a University of Michigan, onde fez uma especialização em jornalismo financeiro. Passou também pela Universidade Católica Portuguesa. Comentador de assuntos económicos e financeiros em vários canais de televisão generalista, é também docente universitário. Em 2010, por solicitação de várias entidades (portuguesas e multinacionais), começou a fazer palestras de formação, dirigidas aos quadros médios e superiores, em áreas como Liderança, Marketing e Gestão. Em 2007 estreou-se na escrita. No seu livro mais recente, “Fartos de Ser Pobres”, volta "a pôr o dedo na ferida", analisando os resultados eleitorais, os vários cenários políticos e os novos desafios para a economia.